terça-feira, 11 de julho de 2017

Parada

Tem mil coisas na minha cabeça. São tantas que mal consigo organiza-las num fluxo único de pensamentos. Tem mil coisas no meu coração. São tantas que eu nem sei direito o que sentir. São tantas coisas borbulhando freneticamente dentro de mim que, qualquer conversa esporádica não da conta de mim mesma. Parece que as coisas não fazem sentido, ou fazem menos sentido, ou então, perdem o brilho quando a gente fala. Não sei se eu sou uma má narradora, ou se as pessoas são más ouvintes ou se é uma questão de limitação dasconversas mesmo. Acredito fortemente nessa hipótese: de que é uma limitação das conversas cotidianas. Ela não conseguem abranger a grandeza das coisas que borbulham dentro da gente as vezes. Parece que falar torna tudo mais real e as vezes, a gente precisa de menos realidade e mais poesia. Entendo os poetas, sabe? Eles encontraram uma forma mais fidedigna de expor o que berra dentro de nós. E, apesar de não ser poeta, as palavras escritas organizam melhor meus sentimentos, minhas ideias. Ou, mais do que isso, me livram um pouco delas. É pesado carregar coisas que cabem em uma folha de papel em branco.

Bom, eu fui a missa domingo e pedi para Deus fazer dessa semana, a vontade Dele. De verdade. Eu frequentemente peço para Deus fazer o que Ele quiser, porque acredito nos planos Dele pra mim. É óbvio que quando a nossa vontade é a mesma é ótimo. Mas quando isso não acontece, prefiro que a Dele prevaleça. É preciso uma dose de coragem para isso ou de falta de noção. Mas acho que parte dessa vida, as nossas escolhas são porque a gente não tem real noção. Muito mais do que por excesso de coragem.

Mais um dia de plantão no CTI e, como todo dia de plantão, já pensava em voltar para casa e em como aquele seria mais um dia, apenas. Estávamos passando todos os pacientes logo pela manhã e dividindo quem ficaria com quem. "Então, todo mundo já sabe que esse paciente aqui é super grave" "A Lia queria ficar com ele" disse a outra acadêmica. Já tinha comentado com ela que queria ele, afinal, a gente acaba aprendendo mais com o paciente mais grave. Tudo bem! Fica no quadro marcado que o verei e continuamos dividindo o restante dos pacientes até que alguém grita do corredor "paciente do leito 21 tá batendo a 20".

SAI. TO.DO. MUN.DO. COR.REN.DO. Paraoleito21.
Os médicos correm. As enfermeiras correm. Puxa o carrinho. Pega adrenalina. Alguem cronometra, por favor. Quem vai revezar a massagem? Pega o ambu. Pega o outro ambu. Cade a adrenalina? Chama a fulana. O que ta acontecendo? Ah, ele parou. Tá em assistolia. Continua a massagem. 2 minutos, troca. Falta oxigenio? É tep? Infartou? Ele tava bem ontem. Ele tava? Tava. A gaso dele de manhã é boa. Troca a massagem. Adrenalina. Mais devagar. Mais rápido. Pera, checa o pulso. Epa. Calma. Ritmo bagunçado. Organizou. Sinusal no monitor. Opa. Voltou Gente.Ufa. Pega o USG. Não tem pneumotórax. Tá aquecido. E agora a gente pode... Parou de novo! Massagem, cronometro, adrenalina. Posso massagear? Pode. Vai, troca. Reveza. Mais uma ampola. Voltou? Não. A gente vai continuar até quando?
Silêncio.
Massagem, adrenalina, sem ritmo. Linha reta.
Último ciclo. Adrenalina.
Já foram quantos minutos?
40.
Que horas são? 9:41h.
...

A vida foi. A vida já tinha ido. E nossos esforços não foram em vão. Foram nosso próprio suporte. De que tinha algo há fazer. Mas dizem por aí "ele não resistiu" ou a vida tem seu próprio tempo e a Medicina seus próprios limites. 35 anos. Passou por esse mundo por 35 anos e se foi ali, na frustração de uma equipe capacitada que não se acostuma com a morte, mesmo lidando com ela rotineiramente. A vida tem prazo, mas é universal acreditarmos que ele beira os 100 anos (ou ultrapassa isso). E quem foge disso é a exceção. Esqueceram de contar pra gente, ou a gente não quer aceitar que a gente tem prazo sim, mas não são 100 anos. E que a regra é nao chegar até eles. Cada um tem o seu prazo e o grande mistério da vida é justamente não saber quando ela termina. A Medicina tem isso de acreditar que perdeu os anos vividos ou a sobrevida. Ou que ganhou. A verdade é que a gente não sabe de nada mesmo. Cria-se guidelines, procotolos, estudos, estudos e mais estudos. Mas a hora, 9:41, é inevitável. A gente, literalmente, sua para retardá-la. Mas as vezes a grande sabedoria é saber a hora de aceitá-la.
Eu vi uma equipe abalada. Como uma perda da batalha. Esforços em vão. Fiz tanto para tão pouco. E nosso heroísmo? E nossas vidas salvas? Mas como diz o poeta, mais vale uma derrota do que 100 batalhas ganhas. E, será mesmo que é derrota? São nossos planos. E os planos Dele. E nossa falta de compreensão.
Pode parecer um tipo de tortura, mas fiquei ali do lado parada, imaginando quem seria aquela pessoa. E como ela era sem os canos, os tubos, os acessos, sem a doença. Imaginei. Fui olhar suas informações médicas no prontuário e achei a foto da sua RG. Ele era bem diferente. A vida tem uma cor que a gente reconhece apenas quando sabe a cor da doença. Ou do fim da vida. A vida brilha diferente em cada um de nós e eu agora sabia qual era sua cor. Seu nome. Sua família. Sua esposa estava vindo com sua mãe. E teriam uma das piores notícias da vida delas. Não era eu que daria, mas em poucos meses, será. E acho que essa é uma das partes mais difíceis da Medicina: se a notícia ruim tem uma cara, essa é a nossa cara. E mesmo que não seja uma derrota pessoal, soa como se fosse. Nós perdemos. Vocês perderam. Todos nós perdemos. Mas sentimos de maneira diferente. Me afeta. E, por mais que pareça tortura querer ver a reação da família, acho que é isso que me atrai. O afeto. Enquanto me afeta, eu me sinto viva. Por dentro, um turbilhão de coisas. Por fora, vida que segue. Há muitos outros a cuidar. Pode parecer tortura, mas é só medo mesmo.
Medo de endurecer. Medo de ficar indiferente. Medo de errar. Medo de ser responsável. Medo de crescer. Medo de ser médica. De falar. De ouvir. Entre tantos medos, dá medo até de desistir.
A gente fala pouco sobre isso. Parece que falar sobre medo nos inferioriza. O mundo é dos ousados, dos corajosos, de quem vai sem olhar para atrás. Não há tempo para se olhar para atrás.
Mas ele está ali. O medo.Ora sendo a atenção redobrada para que tudo caminhe no seu espaço. Ora motor, impulsionando mesmo que presente. Ora paralisando. Nem que seja paralisando no sentido de parar e fazer pensar. Pensar que a vida voa! E que tudo pode acabar como surgiu: uma notícia.

Que vida louca! Sabe, as vezes eu lembro que escolhi Medicina pela sua intensidade: a vida e a morte tão pertinhos tornam o nosso próprio jeito de viver a vida mais intenso. E afeta a vida dos outros de maneira intensa. Mas as vezes, me esqueço. De verdade. Me pergunto se me falta noção suficiente para escolher ser médica. Meu Deus! Somos todos um bando de malucos achando que sabemos alguma coisa, quando na verdade, estamos todos perdidos tentando todos os dias dar nosso melhor, sentindo todos os dias que nunca saberemos o suficiente, achando que os protocolos nos respaldam, quando na verdade, a gente não tem ideia do que pode acontecer. A medicina é imprevisível porque trata de vida. E que linda metalinguagem, nós, seres vivos, tratarmos dela. A vida. Que nós mesmos vivemos. Nada mais imprevisível que a vida. vida e medicina se confundem de uma maneira tão assustadora quanto extraordinária. Mas hoje, particularmente, foram daqueles dias mais assustadores.

A tarde, quando o plantão voltou a rotina, eu e a outra acadêmica ficamos conversando com o médico sobre como foram seus primeiros plantões. E ele me ensinou muito mais do que os eletrocardiogramas que ficamos estudando. Me ensinou sobre a diferença do ferro e do aço. O ferro é duro, mas quebrável. O aço é mais resistente e maleável. Grandes coisas são feitas com o aço! E a grande diferença entre eles são 2% de carbono. Que para se tornar aço, junto com o ferro, passa por um processo de aquecimento, pancadas e alta resistencia. A grande diferença entre nós, pequenos ainda, jovens, inseguros e assustados para a de médicos calmos, admirados e reconhecidos, é o processo. É a experiência. As pancadas. Os erros. É a vida. A mesma que a gente cuida. Ela, tão imprevisível quanto extraordinária, acontece.
Que, acima de tudo, a gente aprenda com o que ela ensina. A vida e a Medicina. Que acontece. E ensina. E erra. E acerta.
E, se atrás de todo erro, vierem muitos acertos, que tenhamos a serenidade de continuar. Que eu tenha a serenidade de continuar. Por que isso tudo é muito maluco.

Depois de conversarmos, continuei a rotina do fim da tarde. Até que vi uma amiga entrar. A acadêmica que deu plantão semana retrasada comigo, formou semana passada e hoje, era seu primeiro plantão. Abracei-a desejando que desse tudo certo. Só a gente sabe o medo que a gente compartilha. Ela transparecia nos olhos a empolgação de quem acabou de pegar o CRM e o medo da responsabilidade que a abraça. E vendo a acadêmica de ontem, hoje médica plantonista, pensei de novo. Como a vida é maluca.

Em um dia só, eu vi seu fim. Seu percurso. Suas mudanças. Vi o novo e o velho. E, no meio de tudo isso, entrei em outros leitos os quais a vida continua. Sem nem fazer ideia do que se passava ao lado.
Como diria Guimarães Rosa: "...A vida é assim, esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem"
Talvez coragem não seja a ausência de medo. Talvez coragem seja ir com ele mesmo. Mas ir, acima de tudo. Para frente, para cima, pro lado, para o fim, para o início, para o recomeço. Para o erro e para o acerto. Que vá. E que valha a pena. Sempre.