terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Nao é justo

 Meu pai tem umas frases clássicas que depois, descobri o efeito que causam e a verdade que carregam. Nao sei se é coisa de pai ou se é mania do meu. Mas acho que pai tem essa imagem, de parecer saber das coisas. Bom, o meu sabe. E uma das que eu escuto desde que me conheço por gente é "o mundo nao é justo, filha. Não procure a justiça do mundo".

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Eu demorei a entender.
Primeiro, achava um absurdo. Como assim, nao procurar justiça? O último que sair apaga a luz entao, porque se nao há justiça, não há garantias. O bem nao ganha do mal no final. O vilão pode vencer. E o bom pode até nao fazer sentido em ser.
Demorei a entender que a gente nao pode procurar a justiça no mundo. Mas pode continuar sendo justo.
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Passei a notar que o mundo realmente nao o é. O externo nao compete a mim. Mas quem eu sou e o que eu quero, sim. Mesmo que nada vá bem, no fundo, tudo é sobre deitar a cabeca no seu proprio travesseiro e conseguir dormir. Pode ser que ninguem veja, reconheça ou valorize. Mas tem coisa que basta a gente com a gente mesmo. Não há no mundo, mas pode haver em nós.
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Nao procure. Por que nao vai encontrar. Nao espere recompensa. Nao aguarde valorização. Nao solicite reconhecimento.
Há um abismo, por vezes, entre quem acham que somos e quem verdadeiramente somos. Entre o que falam de ti e o que voce é. O que fala ecoa, ressona, passa. O que você é, fica. E é a unica coisa a qual voce realmente tem domínio. Não se deixe afetar.
talvez o externo tenha razão. Talvez nao. Nao importa. Ou nao deveria importar.
Siga fazendo o seu. Sem esperar.
Só vai. O mundo é injusto e o tempo é curto.
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Um dos maiores desafios de viver talvez seja o de assumir você mesmo. Seja lá quem você for. No que acredita, quem voce ama, o que gosta, o que quer, o que pensa. Seja padrão ou nao. Ser é um desafio em tempos de pare-seres/pareceres.
Pode nao agradar. Pode criar conflitos. Pode surpreender. Pode ser indiferente.
Mas o externo? O externo nao nos compete. Pode ser o que for. Seja.
Doa a quem doer. Porque se assim nao for, a única dor que vai restar é a sua própria. E a injustiça consigo mesmo.
Vai.
O mundo nao é justo. Mas ainda sim, é bonito.

Somos.

Quem eu sou? Quem é você?

Somos o que? O que gostamos? O que sentimos? O que fazemos? O que pensamos? Quem conhecemos?
Quem somos?
As coisas que nos pertencem? As memórias que fizemos? As relações que trocamos?
Somos brevidade ou eternidade? Somos céu ou cidade? Somos o que?
O que falam de nós? Ou o que falamos dos outros? O que somos exatamente?
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As musicas que escutamos. As viagens que fazemos. O trabalho que nos dedicamos. As coisas que compramos. O livro que lemos. Ou somos o não?
As musicas que nao escutamos. As viagens que deixamos de fazer. O trabalho que nao escolhemos. As coisas que nao compramos. O livro não lido.
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Somos sopro ou suspiro? Batida ou silêncio? Luz ou escuridão? Sono ou atenção? Cansaço ou energia?
Somos terra ou água? Somos onde estamos? Ou onde queremos estar?
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Somos as brigas que tivemos? O perdão que aceitamos? Os términos ou recomeços? Somos a curva ou a linha reta?
A estrada ou a paisagem? A flor, a pedra ou a estrada?
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Somos fluidos. Somos mudança. Somos rocha, vento e ventania. Somos, no fundo, perdidos fingindo ser encontrados.
Somos nossa aparência e nossa escuridão. O que trazemos no coração, o que pensamos e o que fazemos. Nao sei se somos nossas escolhas. Ou se elas que são a nós. 
Talvez sejamos como reagimos ao que nos ocorre. Ou talvez não.  Talvez sejamos o que queremos ser. E nem sempre conseguimos.
Somos folha solta e raízes fortes. Somos a contradição, as incertezas, a coerência.
As vezes, tenho a sensacao de que ninguem sabe o que é.  Ou o que está fazendo.
A gente so olha o proximo passo e se apega a ele pra andar. O resto, é distante e nebuloso. Somos quem tentamos ser. Todos os dias.
E surpreendidos, ao notar que, eis o maior desafio: ser.

domingo, 15 de novembro de 2020

Siga(mos)

 15 de novembro de 2020.

Domingo.
Dia de eleição.
Ultimo dia de férias.
Ano de pandemia.
Mas nao é das eleições que eu quero falar. Nem do domingo. Nem da pandemia. É sobre as férias.
Meus planos iniciais eram ir pra Portugal em outubro. Depois de ja ter feito eletivo em São Paulo no meio do ano. Meus planos iniciais eram estudar muito. Muito e em serviços diferentes. Planos e alguma ingenuidade sobre o não controle dessa vida.
Mas o mundo mudou em 2020 e todos os planos tiveram que ser refeitos. Meus. Seus. Nossos.
E por algum motivo que eu acredito ser Divino, estou aqui.
Nao fui pra Portugal. Não fiz o eletivo que eu planejei em São Paulo. Nao tirei ferias no meio do ano. Não conheci varios servicos. Nao estou mais cheia de certezas.
Mas recebi mais. Foram 45 dias.
Uma viagem pro Jalapão. Que poderia ter sido "só " uma viagem. Mas foi uma terapia. Uma catarse. Uma fábrica de memórias e sensações que as vezes, ainda me pego pensando, se superei. Acho que não.
A gente faz planos. Mas Deus faz melhor e depois de muitos anos, eu Fe e Mi comprovamos o que ja imaginávamos: que a gente foi feita pra viajar. Pro mato.
E que mato. Ou seria casa?
Talvez o grande segredo da vida seja esse: ser nossa essencia na rotina tanto quanto se é na sua verdadeira casa. Leve. Feliz. Autêntico.
São Paulo veio com estudos. E ingênua eu achar que seria só estudo. Foi companhia. Foi amor. Porque o mesmo Deus que permitiu o mato, me trouxe um parceiro de vida pra uma viagem transformadora. Foi amizade. Foi dúvida, foi reflexão, foi e ainda é e talvez seja, mudança. Mas nao dessas de fora. Essas de dentro.
Esse dia sorrateiro que chega como quem nao quer nada e deixa aquele pensamento sutil que cresce e vira incomodo de quem está prestes a voar.
E dá medo. Medo de cair. De quebrar as asas. De não saber voar. Mas nao da pra viver incomodada nessa vida. E são paulo trouxe incômodo, daqueles que te fazem sair correndo. Sair do lugar. Pra qualquer lugar.
Veio Búzios.
"A cabeça cheia de problemas". Buzios foi afago pra mente. Foi paz. Foi sintonia. Foi descanso. Foi parceria.
O Rio foi reflexão. Conflito. Decisão. Realidade. E ainda há muito pra ser.
Rio é rotina. É o fluxo necessário da vida. O chão. O caminho. A responsabilidade. O compromisso.
E cá estou eu. Depois desses 45 dias intensos. Memoráveis. Inesquecíveis. Transformadores. Bem vividos.
Trouxe algumas certezas. Muitas dúvidas.
Mas tudo bem.
Dizem que a vida é isso.
Fluxo. Roda. Caminhada. Movimento. Ora sim ora não. Ora espinho, ora flor. Ora folha. Ora arvore.
Que bom.
Estar viva.
Que siga. Como deve ser.
Que seja o que viver e haja o que houver.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

18.10

 A vida é um sopro. Ou de varios sopros se da a vida.

Vivemos no intervalo de um inspiracao e outra expiração. Intercalados por taqui e bradipneias, dispneias e suspiros.
Vivemos. Entre tropeços. Corridas. E pausas. E talvez, numa bela tarde chuvosa, a gente se olhe por fora. Pra notar que mais corremos que vivemos. E por vezes, competimos. Só nao sabemos ao certo com quem. Competimos essa batalha ja perdida. Ou ganha? Sabemos o fim. Por que saber o fim nao pode ser um trunfo, inves de uma derrota?
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A medicina me irrita por tantas vezes. Me consome. Me entristece. Me cobra. Me leva a exaustão. Me afasta. Me interroga. Me faz me perder de mim.
A medicina me faz chorar. De dor. De medo. De ansiedade. De cansaço. De alegria. De superação. De conquista.
Nao sei se, entre uma respiração e outra, eu escolhi ou fui escolhida.
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"Por que medicina?"
Me indagam. E minha resposta mais sincera talvez seja: nao sei mais.
Ja vi seu lado mais bonito. E mais feio. Suas podridoes. E seu heroísmo. Ela transforma, arrebate, imerge. Quando acha ja te pediu tudo, te exige mais. E quando acha que vai exigir, te alivia.
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Eu lembro, em algum pensamento remoto de uma Lia bem mais nova, que eu queria fazer algo que fizesse muita diferença no que eu achava que mais era importante no mundo. A vida do próximo.
Eu podia nao ser boa nos esportes, na musica, na arte, nos relacionamentos, na Historia, na Geografia e na matemática. Podia ser timida, a ultima da fila, a mais caxias, a menos habilidosa. Mas queria fazer alguma diferença. Seja la o que acontecesse, pelo menos aquela pessoa saiu melhor por mim. Aquele mundo todo. Dela. E aí valeria a pena.
Enxergava o mundo todo como varios mini mundos de cada um. Nunca fui de grande multidões. Prefiro as individualidades.
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No percurso, descobri suas outras faces. A exaustão, o romantismo, a hipocrisia, a mercantilização. Me perdi algumas vezes me sentindo ruim. Pessoa ruim. Medica ruim. Mulher ruim. Tocar "a alma humana " parecia mais frase de formatura clichê do que vivência real.
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Mas a medicina tem disso. Parece que traz um pico em seguida ao nadir. Parece a vida mesmo. Traz momentos de olho no olho. De confianca. De "obrigada dra, eu consegui". De confissões. De alívio. De gratidão. De recompensa.
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Ser médica é só uma das minhas múltiplas partes. Nem sempre a mais bonita, mas certamente uma que me transforma diariamente. Ocupa muitas das minhas respirações. Isso quando nas as acelera ou as interrompe. Me faz enxergar, acima de qlqr outra coisa, que a vida é um instante. Vendo tantos deles se desenrolarem à minha frente, eu aprendo, todo dia, o valor de viver. De diferentes perspectivas.
Respeito e tenho a ciência como parte fundamental do meu trabalho. Nossa responsabilidade nao é poética. Nosso saber é limitado. Mas rezo para que toda vez que eu me perder na frieza dos livros e da rotina, saiba o caminho de volta. Quantas vezes forem necessárias.
Afinal. Nao ha felicidade sem completude. E nao há completude sem amor.

Cores do cerrado

 Fomos 3. Eu, Mi e Fe. Ja nem me lembro mais há quantos anos a gente idealiza uma viagem, um mochilao, uma fuga.

Eu acredito no tempo certo das coisas. Na fluidez de energia. Nos planos de Deus. E te falar, continuo me surpreendendo, mesmo acreditando. Por que a gente torce pra ser bom, mas tem coisa que supera completamente nossas expectativas. Daqueles momentos que a realidade fica melhor do que qualquer sonho. E a vida mostra seu sentido. Sua intensidade. Sua vibração mais genuína.
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Dia 4 de outubro saimos de chapeu de palha, botas de trilha, biquínis e maios e uma mala de mao pra 7 dias. Ninguém tinha colocado os pés no Norte do País, nao conhecíamos ninguem no Estado mais caçula da Federação. Mas fomos de coração aberto, sorriso largo e vontade de viver. Quando eu olhava pro lado, cruzava com duas almas que brilhavam. Simples e lindas. Parceiras e reflexivas. Amadoras na blogueiragem e profissionais na capacidade de cativar.
E cativamos. E nos deixamos cativar.
Sábio Pequeno Príncipe que ja dizia: "cativar significa criar lacos"
Bom, difícil dizer quais os laços mais fortes.
Se foram entre nós mesmos e a parte de nós que se esconde na loucura da rotina e emerge com mais vontade que a agua de um Fervedouro quando nos dispomos a sermos essencia. Dizem que ninguém volta igual de uma viagem. E aquelas terras tocantinenses sabem disso.
Nao sei se os lacos mais fortes foram entre nós 3, eu mireeeelle e fefe que nos vimos em situações inéditas e só confirmamos que nossa sintonia aumenta com o tempo e com o mato.
Se foi com ele, o mato. Ou ela, a natureza. Que é e sempre será nossa casa. Mas com frequência esquecemos disso e a maltratamos. O Jalapao é um paraíso esquecido. Paraíso porque é lindo. Lindo me parece uma palavra pequena demais pro que é aquele lugar. Mas acho que ele nao cabe em nenhuma palavra. Seu cerrado colore o ceu, o chao e as aguas. E quantas aguas! Seja rio, cachoeira ou fervedouro. Todas cristalinas e coloridas. Refletem seus arredores. Azul. Verde. Branco. Laranja. O proprio arco íris pintado por um Verdadeiro Artista.
Paraiso porque é lindo. E esquecido porque nao é muito visto por nossos governantes. Cuidado apenas pelos quilombolas. Achei estranho no início pra depois concluir que talvez seja melhor assim. Continuar esquecido por quem degrada e lembrado por quem respeita e entende que a propria natureza se cuida. É só a gente nao interferir que ela faz seu trabalho. E que trabalho!
Não sei qual laço foi mais forte.
Se foram entre as pessoas.
Entre nós e o Rui. Que de moleque estereótipo heterotopzera virou nosso tocantinense com sotaque paulistano (meeeeu) contador de piada sem graça, cantor ruim mas ecletico no estilo musical e forrozeiro que faz sarrada no volante e virou amigo inesquecível.
Entre nós e Mineirim, com seu jeito peculiar de contar historia e zuar da nossa cara quaaase fazendo nos nao perceber que por tras de tanta brincadeira, ele tava preocupado e cuidando de todo mundo.
Entre nós e os tocantinenses. Povo gente bonissima. Com um sotaque nem nordestino nem goiano nem caipira mas tudo isso junto. Cantado com jeito nortista. Vini com a melhor historia de como conheceu o Rio de Janeiro fez com que trocassemos o fervedouro pela melhor prosa embaixo da arvore e cheia de simplicidade e expressões peculiares. Aprendemos o que é moco. Incendiozinho. Chuveiro quadraaado. Mulher com coxa pé de manga. Que o buriti se arrocha. E o cheiro se manda pra quem vc cativa.
Thiaguinho passou rapido, mas o suficiente pra encantar com sua simplicidade elegante e olhar puro.
Nao sei se foi Jane, se foi o dono do Buriti, o Branquinho melhor cozinheiro de bolo de maracuja, a cozinheira de ponte Alta ou de Mateiros. Nao sei se foi o vendedor de sorvete de Buriti, Cagaita ou Bruto(os quais ainda sigo com dificuldade de identificar ehehheheheh).
Nao sei se foi os Vida ou o instagrammer anestesista amigo do Alok. Que começaram tímidos mas logo se renderam as "3 patetas". Se fecha ô paraqueda!
Se o laço foi comigo, com elas, com o lugar ou as pessoas.
Ou se foi simplesmente com o vento na cara ouvindo musica alta numa 4x4 na estrada com a terra que me cobriu por inteira. E nos fez gargalhar e ainda fara por muitos momentos em que estaremos em nossas rotinas sem uma a outra pra compartilhar. Vai virar aquela risada aleatória do "ta rindo do que?" "Nada nao lembrei de uma coisa".
Nao sei mesmo.
Se foi a Mi dancando que nem uma colher, a Fernanda fingindo que nao tinha medo do grilo mutante no meu cabelo, o Rui guiando numa travessia no Rio tipo globo reporter ou falando e ai? Leeticia? ou toda a comida caseira bem temperada que comemos.
O que eu sei é que o coracao ta apertado.
Talvez de saudade. Talvez de tristeza. Talvez de nostalgia. Mas certamente grato.
Foram 7 dias em Tocantins.
5 no Jalapao.
1 na Ilha da da Canela.
E outro a mais de 150 metros de altura a 60km/h numa tirolesa.
Que viagem! Que memória!
So tenho a agradecer.
Obrigada meu Deus, por tamanha generosidade.
Pela viagem. Pelas pessoas. Pelos lugares e pelas companhias.
Obrigada por me juntar com outras 2 meninas- mulheres que sabem que a vida boa mesmo é de pé no chao, vento na cara e cabelo molhado de rio.
Obrigada Cerrado, pelos amanheceres e entardeceres alarajandos mais bonitos que ja vi.
"Eu gosto do Por do sol. Vamos ver um?".
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Seguimos "cariocas", mas agora com amigos nortista, memórias tocantinenses, um pouco mais morenas e com o coração mais cheio.
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Obrigada, meu Deus, por me lembrar que pra ser feliz é disso que a gente precisa : pessoas que saibam o que importa na vida e nossa casa-mato de cenário. O resto, é história que vira memoria. Refúgio nosso de cada dia.
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segunda-feira, 27 de abril de 2020

Pra onde quer que você vá

26 de abril de 2020
18:53h
Último atendimento do plantão:
Entra uma menina de 20 anos, cabelos cacheados, magrinha, fala mansa, postura calma, máscara colorida, acompanhada do namorado.
-Boa noite, meu nome é Lia, sou médica do plantão, como posso te ajudar?
-(Queixa x y z)...dra, esse monte de gente ta la fora por conta do que ta acontecendo?
-Olha, eu nao sei como está la fora na entrada do Hospital. Mas se você ta perguntando se está cheio devido ao coronavirus, posso te dizer que de internação, está sim. Tem poucos leitos vagos. Então, se estão se perguntando se tudo isso é verdade, não só é verdade como está pior do que parece.
O namorado interrompe:
-Mas é só gente com doença, né? Mais velho?
-A maioria sim...mas tem gente jovem sem comorbidade (doença), internando tambem.
Eles se calam.
-Fulana, vai ali no banheiro pra colocar o avental pra eu te examinar, tudo bem?
....
Durante o exame, ela solta:
- Vocês não tem medo, não? De trabalhar assim, nessa situacao?
Gente. Já era meu segundo plantao do fim de semana. Ja tinha atendido suspeita de covid, operado suspeita de covid rezando pra nao me irritar com aquele monte de epi que te protege mas atrapalha tudo, ja tinha pensado em sair de casa, já tinha me estressado com várias mudancas na residencia....Mas, aquela pergunta veio como uma lança cortante que abre a cicatriz que você tá tentando esconder a duras penas. Aquilo que quando você menos espera, alguem traz a tona de modo tão gentil, sincero e ingenuo, que sua única saída é ser sincera também, mas sem descompensar:
- Temos. Temos muito medo (por mim e pelos meus, pensei). Mas a gente escolheu essa profissão, não da pra fugir. Por isso que tem tantos relatos de medicos pedindo para as pessoas ficarem em casa. Se pudéssemos, a gente ficaria também.
Ela silenciou.
Talvez não imaginasse que eu falei mais pra mim mesma do que pra ela: "Não da pra fugir...".

Passei o plantão. Saí do hospital e tinha realmente muita gente na entrada. Olhei pra Lua, linda. Daquelas fininhas pontiagudas. Pensei porque diacho a gente valoriza tanto a Lua cheia quando a lua crescente/minguante é tão bonita quanto. Toda desenhada. Perguntei- me quando que a gente vai poder fugir um pouquinho pra um céu aberto e ficar olhando pra cima contando as estrelas e admirando a Lua. Só pra lembrar que o mundo é bonito. Enfim.
Entrei no carro, liguei o rádio e o destino apronta:
"Vamos fugir....leave me alone....desse lugar baby...leave alone...ah vamos fugiiiir....pra onde quer que você vá, que você me carregue".
Lacrimejo.
Nossa pequenez nesse mundão não nos permite saber os planos de Quem prega essas peças em nós (um tanto criativas por sinal). Nos resta nossas próprias interpretações.
A mim, nao soou como um conselho. Talvez mais como um desejo que não pode se realizar. Talvez mais como um respiro de fim de plantão. Acabou por hoje.
Vai, descansa, depois tem mais.
Mais gente estressada, mais fluxos que mudam toda hora, mais escalas novas em especialidades que não são a minha, mais pacientes suspeitos, mais trabalho, menos aprendizado, mais cansaço, menos lazer, mais notícias ruins, menos isolamento. Mais medo.
Vai. Descansa. Respira. Ora. Confia. Torce. Se acalma. Se controla. Não desiste. Não se desespera.
"Não da pra fugir".

segunda-feira, 30 de março de 2020

A invisibilidade do caos

Estamos vivendo dias assustadores.
Ninguém nunca imaginou o mundo inteirinho parado por um vírus. Pelo insivivel (Ou por qualquer outro motivo que seja). Um mundo, literalmente, vazio nas ruas. E ainda assim, caótico. Nossos maiores gritos de medo, angústia e tristeza se traduzem no silêncio incômodo de todas as esquinas.
É estranho. Por que nunca estivemos tão isolados e, ao mesmo tempo, tão próximos de tantas outras nações.
Estamos mais voltados para dentro de nós mesmos: pensamos sobre a vida, sobre o que valorizamos, sobre aonde vamos parar, sobre quando vai acabar, sobre o que tudo isso vai deixar. Estamos sozinhos, cada um com suas reflexões e, ao mesmo tempo, conectados por esse fio longo da fragilidade humana.
Alguns, possuem um barco pra essa tempestade. Outros, um navio. E há ainda os que tem apenas uma canoa. Mas, invariavelmente, o mar está de ressaca pra todos os seus navegantes. (Na verdade, está mais pra um tsunami, mas acho ressaca mais poetico rs).
"Será que eu consigo passar?". Pensa o barco. O navio. E a canoa. Tem gente que tem 1 pessoa na navegação. Tem gente que tem 10. E tem gente que, além de navegar, está tentando fazer a onda parar.
Os que caem no mar e se afogam, seguem sozinhos sem despedidas. A tempestade não permite as formas mais clássicas de afeto. A despedida. O abraço. O beijo. O calor.

A gente está tendo que se reinventar todos os dias. E um de cada vez. Seja num afazer novo em casa, seja aumentando ou diminuindo a quantidade de informações que recebemos, seja com novas(ou antigas) formas de conversa, seja se permitindo não fazer nada. Todos os dias. Repito, um de cada vez, cada um de nós, tem que lidar, de novo, e de novo, e de novo, com esse turbilhão de sentimentos que nos invade ao abrir os olhos e perceber que, nada acabou.

São dias difíceis. É como se parte da alegria genuína e otimismo se esvaizem só resta-se angústia e desânimo. Desculpe se esse nao é mais um desses textos otimistas, engajando para sermos solidários ou acreditar que tudo vai passar.
Mas é sincero. Um desabafo.
Os números crescem na mesma velocidade que as notícias sobre novas besteiras ditas por líderes políticos (ou lider político). E eu já nem sei se estamos cansados pelo medo da doença a nós e aos nossos, pelo turbilhao de informações negativas todos os dias, pela exposição diaria dos profissionais da saúde ou pela briga política claramente ignorante sobre uma das piores catástrofes deste século. Se a morte das pessoas te afeta menos do que as engrenagens da economia, então, falhamos como humanidade. E isso também cansa. Explicar o óbvio.
Nao sei se é isso ou tudo isso junto.
A tempestade é dentro e fora de nós. A todo tempo. Apesar dos silencios.
Eu nunca quis e continuo nao querendo o heroísmo médico. Sinceramente, só quero que passe. Logo. E, principalmente, sem (muitas mais) sequelas.

Peço a Deus uma fé maior. Pra ter a certeza de que Ele cuida de todas as tempestades. Todos barcos. E todos os tripulantes. Para confiar que vai passar.
E que seremos melhores pessoas, entende se, que se importam uns com os outros.
Se o mundo todo está um só dentro de casa, que continuemos um só ao sairmos dela.