segunda-feira, 27 de abril de 2020

Pra onde quer que você vá

26 de abril de 2020
18:53h
Último atendimento do plantão:
Entra uma menina de 20 anos, cabelos cacheados, magrinha, fala mansa, postura calma, máscara colorida, acompanhada do namorado.
-Boa noite, meu nome é Lia, sou médica do plantão, como posso te ajudar?
-(Queixa x y z)...dra, esse monte de gente ta la fora por conta do que ta acontecendo?
-Olha, eu nao sei como está la fora na entrada do Hospital. Mas se você ta perguntando se está cheio devido ao coronavirus, posso te dizer que de internação, está sim. Tem poucos leitos vagos. Então, se estão se perguntando se tudo isso é verdade, não só é verdade como está pior do que parece.
O namorado interrompe:
-Mas é só gente com doença, né? Mais velho?
-A maioria sim...mas tem gente jovem sem comorbidade (doença), internando tambem.
Eles se calam.
-Fulana, vai ali no banheiro pra colocar o avental pra eu te examinar, tudo bem?
....
Durante o exame, ela solta:
- Vocês não tem medo, não? De trabalhar assim, nessa situacao?
Gente. Já era meu segundo plantao do fim de semana. Ja tinha atendido suspeita de covid, operado suspeita de covid rezando pra nao me irritar com aquele monte de epi que te protege mas atrapalha tudo, ja tinha pensado em sair de casa, já tinha me estressado com várias mudancas na residencia....Mas, aquela pergunta veio como uma lança cortante que abre a cicatriz que você tá tentando esconder a duras penas. Aquilo que quando você menos espera, alguem traz a tona de modo tão gentil, sincero e ingenuo, que sua única saída é ser sincera também, mas sem descompensar:
- Temos. Temos muito medo (por mim e pelos meus, pensei). Mas a gente escolheu essa profissão, não da pra fugir. Por isso que tem tantos relatos de medicos pedindo para as pessoas ficarem em casa. Se pudéssemos, a gente ficaria também.
Ela silenciou.
Talvez não imaginasse que eu falei mais pra mim mesma do que pra ela: "Não da pra fugir...".

Passei o plantão. Saí do hospital e tinha realmente muita gente na entrada. Olhei pra Lua, linda. Daquelas fininhas pontiagudas. Pensei porque diacho a gente valoriza tanto a Lua cheia quando a lua crescente/minguante é tão bonita quanto. Toda desenhada. Perguntei- me quando que a gente vai poder fugir um pouquinho pra um céu aberto e ficar olhando pra cima contando as estrelas e admirando a Lua. Só pra lembrar que o mundo é bonito. Enfim.
Entrei no carro, liguei o rádio e o destino apronta:
"Vamos fugir....leave me alone....desse lugar baby...leave alone...ah vamos fugiiiir....pra onde quer que você vá, que você me carregue".
Lacrimejo.
Nossa pequenez nesse mundão não nos permite saber os planos de Quem prega essas peças em nós (um tanto criativas por sinal). Nos resta nossas próprias interpretações.
A mim, nao soou como um conselho. Talvez mais como um desejo que não pode se realizar. Talvez mais como um respiro de fim de plantão. Acabou por hoje.
Vai, descansa, depois tem mais.
Mais gente estressada, mais fluxos que mudam toda hora, mais escalas novas em especialidades que não são a minha, mais pacientes suspeitos, mais trabalho, menos aprendizado, mais cansaço, menos lazer, mais notícias ruins, menos isolamento. Mais medo.
Vai. Descansa. Respira. Ora. Confia. Torce. Se acalma. Se controla. Não desiste. Não se desespera.
"Não da pra fugir".

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