sexta-feira, 8 de maio de 2015

"Doutora"

Acordei e todo o dia passou pela minha cabeça em uns segundos.
Sair da inércia quando se está na cama parece mais difícil ainda, mas a gente sempre acaba levantando. É um tipo de decisão moral. Do que é certo. 
Escovei os dentes, tomei banho, tomei café, disse tchau, peguei o ônibus peguei trânsito, pensei na vida, pensei no sono, cheguei.
Entrei no quarto. 

O urologista estava explicando como seria a cirurgia e pedindo pra que ele assinasse o termo. Aquele que todo mundo tem que assinar para respaldar o hospital e deixar o paciente sabendo de todos os riscos. Aquele que não respalda o paciente. Só o desespera.
Deu pra ver os olhos arregalados, a mão inquieta, a expressão agoniada, os ombros baixos. 
Ele ainda perguntava, expressava com palavras o seu medo, os seus muitos medos. 
É só uma burocracia, calma. 
Ele assinou, o urologista continuou explicando. Era simples, para prevenir, nada grave, praxe. 
E saiu.

Era minha vez.
E aí, como estamos hoje?
Eu sempre acho legal quando me lembram que, mesmo que a situação seja individual, tem alguém ali por perto. Mesmo que sem fazer muita diferença. E aí entra o estamos. 
Ah doutora(quem dera, penso eu), to com muito medo.
E era essa a maior queixa. Eu perguntei da urina, das fezes, do sono, da febre. Mas o que doía mesmo era o medo. O nervoso, a ansiedade. 
Se a gente tem um sintoma, a gente aprende a perguntar mais sobre ele e assim foi. 
A situação não é tao grave. A quimio vai bem. O físico vai bem. Mas o coração vai mal.
To com saudades. Dos meus filhos pequenos que não podem vir me ver e não gostam de falar no telefone. Da minha casa. Já faz um mês. Um mês. 
E sabe, nessa hora, eu senti. Senti quando dizem que a medicina falha. Ela não falhou tecnicamente, mas eu senti que não tinha um livro que eu tinha que ler de novo para entender melhor. 
Eu tinha um olhar e um desabafo e não se tratava de entender. Era só compreender. 

 Nessa hora, em que não adianta pedir pra se acalmar, dizer que tudo tá bem, que você tem que ser menos ansioso. Não adianta e seria hipocrisia minha dizer tudo isso. Coisas que não gosto de ouvir quando passo por momentos difíceis. Nessa hora, nós sabemos o que "temos que ser", mas nós somos. E ser não inclui "tem que".

E depois de algumas tímidas lágrimas, de deixar ele falar, eu respondi. As vezes,  não basta estar presente e olhar. Quando alguem fala, o outro escuta. Mas depois,espera-se uma resposta. E era necessária. Não podia sair dali, como quem não sabe o que falar. Não saber o que falar também é uma forma de inibir um próximo desabafo. Afinal, se fosse pra falar sem ouvir, a gente falava sozinho. E quanto mais coisas se guarda, mais elas se expressam de outro jeito. 

Bom, disse que, nessa vida, é mais fácil quando damos pequenos passos. Olhar o todo é assustador as vezes, mas olhar o próximo passo, não. Então, é só olhar o próximo. E depois o próximo. E aí, ao se virar, atrás estará tudo aquilo que você achou que não conseguiria. 

Quando a gente poe o jaleco, perde um pouco a identidade para ganhar uma baita de uma responsabilidade. E, as vezes, é preciso tirar um pouco o jaleco e voltar a humanidade. 
E é humanidade. Além de crenças, opiniões, experiências. Difícil transcender nosso jeito para achar o que há em comum ali.
É, de alguma forma mágica o que eu ainda estou tentando descobrir: usar o que é subjetivo e pessoal como base maior de algo que precisa ser expressado de forma quase impessoal e comum. 

Difícil isso. 
Se comover sem se envolver. Compreender e mostrar compreensão sem senso-comum. 

Difícil ser cientista e artista, ao mesmo tempo. Difícil falar aquilo que ajuda e não atrapalha. O limiar entre a solução e o estrado. A tênue divisião entre a calma e o medo.

"Obrigado, doutora. Obrigado mesmo"

Acho que eu que deveria agradecer.

Um comentário:

  1. É doutora, acho que estamos no caminho ;)
    Muito difícil e encantadora essa tal arte chamada medicina.

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