domingo, 29 de novembro de 2015

Quando decidimos ir

7:00, sábado, dia 28/11
Cheguei no plantão.

A semana tinha sido cansativa, a sexta feira exaustiva e a noite mal dormida. Os pacientes eram mais ou menos os mesmos e, como já aconteceu outras vezes, pensei e torci para que me restasse tempo pra dormir. Mas Deus tem planos diferentes dos nossos...

De manhã, enquanto conversávamos com o plantonista, a anestesista veio nos perguntar da paciente Jucelina. Ela estava hipotensa, em regular estado geral, o que aconteceu?
Fomos até ela. Frequência cardíaca baixa, hipotensão, saturação de oxigênio ruim.
Percebeu?
É, percebi. Percebi que o dia seria cheio... Estávamos ali pra isso.
Colhe gaso, sorteia quem vai fazer a punção e a intubação. Olha o monitor. Colhe outra gasometria. Chama o fisioterapeuta respiratório. Fica de olho. Já volto. E agora? Diurese. Não urina. Pressão. Sedação. Fentanil. Nora. Midazolam. Soro fisiológico. Outro soro. Saturação 80. Ambu. Intuba. Aspira. Agora vai. Ventilação. FiO2. Saturação 98 .Pressão 110. Gaso. Estabiliza. Vamos, vozinha.

E agora?
Escreve, anota, descreve, narra. Prontuário atualizado.
Enquanto cuidávamos dela, pensei na sua história. Mora sozinha, recebe ajuda dos vizinhos, magrinha. Sem visitas. E e aí, a gente fica triste. Pela história. E sente mais vontade de ajudar. Para ela se ajudar. Vamos vozinha, vamos que ainda não acabou por aqui.
Ela estabilizou.
Vamos ver os outros pacientes.
Fui evoluir. Escolhi a dona Mercedes. Estava grave também, do lado da dona Jucelina. Tinha o rosto coberto de feridas de bolhas e curativos por todo corpo. Não tinha mais sua forma, mas tinha os olhos. Estava com tubos, acessos, monitores. Além de todas as informações que eles nos trazem, fui buscar informações nela mesmo: tocá-la, ouvi-lá, senti-lá. Será que ela ta muito ou pouco sedada? Dona Mercedes? DONAAA MERCEEEEDES? Ela abriu bem pouquinhos os olhos, estavam pesados demais. Olhou pra mim por menos de 10 segundos. Chamei de novo. Abriu com dificuldade. TA COM DOR? Fez, sutilmente, que não. E foi no intervalo pequeno de tempo que os olhos insistem em fechar. Logo fechou. Sedada. Mas nem tanto. Auscultei. Pulmão, Roooonnn. Roncos. Coração. Tum. Ta. Tum. Ta. Tum. Ta. Barriga. brrummmbruummm. Panturrilhas sem alterações. Pulsos periféricos presentes.
Evolui: 8º dia de internação. Antibióticos, punção. pressão. Nas últimas 24h? Estável. Voltei, esqueci de anotar os parâmetros de ventilação.
Era hora da visita. Uma mulher estava sentada ao lado dela. Cabelos pretos, pele morena, olhar triste. Pegava na mão e, mesmo que dona Mercedes não a olhasse, ela estava ali. Pensei quem seria aquela mulher que conseguia ver a paciente para além de tantos tubos e curativos. Peguei as medidas e saí. Só falei boa tarde. Às vezes, acho que a gente precisa respeitar em silêncio a grandeza de certos momentos.

Acabei de anotar no prontuário e voltei a ver a dona Jucelina. No meio do corredor, encontrei a mesma mulher. Cadê o médico? Ali. Gostaria de saber da minha mãe. Hum, então a senhora é filha.
Olha, ela está estável, mas vou ver com a minha acadêmica como ela passou de ontem pra hoje. Lia? Oi! Então, ela trocou o esquema de antibiótico de ontem pra hoje, laboratório está bom. Então, estável. "Ah que bom! Muito obrigada viu? Muito obrigada por cuidarem tão bem da minha mãe".
Mãe. Sabe que a parte mais difícil da Medicina não é não dormir, não é o plantão , não é estudar horas, não é abrir mão da família e dos amigos. A parte mais difícil é quando a visita de um paciente grave, parecido com os outros, sem muita individualidade, te lembra pelo olhar preocupado que aquela pessoa é muito importante. Você pode não a conhecer, não saber como são seus traços, mas eu sei. E agradeço por cuidarem dela. Nessa hora, a gente lembra que a história daquele paciente começa antes do D1 de internação. Começa na identificação, data de nascimento.
Entristeci. Dona Mercedes estava fazendo falta. Era outra história triste. Estava realmente bem cuidada e posso garantir por ver o serviço tão de perto e participar dele. Voltei a dona Jucelina, era ela quem precisava das nossas preocupações naquele momento. E estava estável também.
E eu achei que o plantão da noite e da madrugada seriam tranquilos.

Dormi.
Domingo, 29/11/2015
6:00h "Meninas, paciente ta parando".
Acordei, coloquei o óculos e o sapato e levantei. Aproveitei esses segundos para continuar acordando. Enquanto andava até a última enfermaria, a de pacientes graves, fui acordando e pedindo para dona Jucelina não desistir.
Mas quando entrei na enfermaria de dois leitos. Não fui até o segundo, da Dona Jucelina. Parei no primeiro.
O médico já estava na escada do lado do leito em posição de massagem e olhava para o monitor. O enfermeiro cuidava da respiração. A outra enfermeira pegava adrenalina no carrinho de parada. E eu fiquei perto dos pés da dona Mercedes, olhando o monitor e rezando e preocupada com números tão baixos de pressão e frequências.
Não havia desespero, não havia pressa. Havia foco, determinação, raciocínio. Sabiam o que deviam fazer, juntamos- nos para ser uma coisa só e torcer para uma coisa só. O médico olhou o relógio.

Massagem. massagem. ambu. ambu. adrenalina 2 ml. Massagem. Massagem. Massagem. Massagem. Respiração. Respiração. Respiração. Massagem, Massagem, Massamge. Adrenalina 3 ml. Reveza a massagem.
Eu fui. Estava calma, Preocupada, mas conseguia pensar com clareza em toda a técnica. Todo o peso do tronco, esterno, frequencia de 100, 90 graus com o paciente, profundidade de 5-6 cm. Vamos Dona Mercedes, vamos!
Cansei. Troca. Massagem, massagem, massagem, respiração. Troca
Fui de novo, pensei na massagem, no monitor e aí, resolvi olha-lá. Enquanto jogava meu peso na maior esperança que o seu coração resolvesse funcionar sozinho, olhei. Ela tinha os olhos abertos e agora, arregalados. Diferente do que eu tinha visto mais ontem. Brilhavam talvez pelo reflexo da luz, mas não estavam ali. Senti. Senti que não era um tórax. Não era um osso, um coração e um monitor. Era uma pessoa. E a massagem nã foi boa durante esses segundos. talvez 2 segundos. "Não vou olhar de novo, não posso. Lia, olha só pra sua mão porque você precisa fazer direito. Porque vai funcionar. Porque ela vai voltar". E voltei a racionalizar, precisava ser efetivo. Foi. Foi tecnicamente, mas não tava mais funcionando. Talvez ela já tivesse ido, há algum tempo. Razão, as vezes, é o melhor caminho do cuidado.
Reveza. Vamos! Pai nosso que estais no céu!Massagem. Massagem. Massagem. Mais 10 minutos e desistimos. O coração não batia mais, O pulmão não fazia nada sozinho. Já faziam 30 minutos. É....

6:30 da manhã. Hora do óbito.

Ela foi antes talvez. Ninguém sabe. A medicina diz sobre o corpo, mas ninguém sabe o momento em que deixamos esse mundo, em que nossos olhos brilham só pelo reflexo da luz mas sem vida, em que nosso coração bate só por uma atividade elétrica qualquer e deixa de carregar nossos amores, nosso pulmão não mais carrega o ar do lugar que estamos, mas só aquele que jogamos pra dentro dele com pressão positiva de uma máquina. Ninguém sabe quando nossa história vai terminar com um atestado de óbito no prontuário. Ninguém sabe. O que a gente sabe é que não termina na memória de quem nos ama. A história não termina na ligação pro familiar. Nem no enterro. Talvez nunca termine, talvez sejamos eternos. Ou talvez, já terminou e a gente continua ali, ligados aos tubos e monitores, sem que ninguém lembre da gente.

Duas mulheres, uma do lado da outra.
Duas histórias diferentes.
Tubos, curativos, remédios e monitores iguais.
O nome de uma delas sai do quadro de internação. Passei o dedo em "Mercedes" para saberem que não eram mais 8, agora eram 7 internados. E alguns documentos de óbito a preencher.
Não se sabe o motivo. Sua história médica ainda estava sendo investigada, ela não era a mais grave do plantão e todo o possível estava sendo feito.
Mas a medicina não explica tudo, porque é sobre a vida. E a vida não segue protocolo. A vida só se faz e desfaz. Deixa interrogações em quem a vê partir. E em quem fica e a gente achou que não ia ficar. A gente estuda por tantos anos, todos os dias, para entender como as doenças funcionam e levam a morte. Em como tratá-las e como agir quando o coração para.
E mesmo assim, não se sabe a hora. Nem o porquê. Nem em quem. Porque eu, não você. Porque ela, não a outra. Porque aquela e não aquele.
Ninguém sabe nem nunca vamos saber. Ela estava com o que era necessário, com o que devia ser feito. E foi mesmo assim. Mesmo que ninguém esperasse.
Deixei meu nome no seu prontuário. E ela deixou seu olhar na minha memória.
Talvez ela não tenha ido.

Vai com Deus, dona Mercedes. Mesmo que eu não conheça sua história de vida, seus anseios, seus sonhos e decepções. Mesmo que eu não saiba a forma do seu rosto. Espero que esteja em paz. E que não desistimos de você. Nem sabemos a hora da sua morte. Nem quando você foi. Mas saiba que, em mim, você vai permanecer. Obrigada por me permitir me tornar mais médica e mais humana.

Cheguei em casa e tinha um presente na minha mesa. Era um rosário.
Deus realmente tem outros planos. E sempre cuida de cada um deles.


(O nome das pacientes foi alterado para preserva-las)

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